Do Desporto como Ideologia à Motricidade Humana como Paradigma Pedagógico

Uma leitura crítica do atual currículo de Educação Física

Resumo

A Educação Física escolar, no atual currículo português, estrutura-se predominantemente a partir da Educação Desportiva. Embora os desportos possuam uma natureza antropológica enquanto práticas culturais humanas, essa antropologia permanece implícita e não explicitada pedagogicamente. O presente artigo defende que, ao não partir de valores fundamentais nem de uma conceção antropológica clara de ser humano, a Educação Desportiva assume um carácter ideológico, e não paradigmático ou modelar, no sentido pedagógico forte. Em contraponto, apresenta-se a Motricidade Humana, tal como formulada por Manuel Sérgio, enquanto paradigma educativo explícito, axiologicamente fundamentado e pedagogicamente coerente.

Palavras-chave: Motricidade Humana; Educação Física; Educação Desportiva; Antropologia; Modelo Pedagógico.


1. Introdução

A discussão sobre a natureza pedagógica da Educação Física não é meramente técnica ou metodológica; é, antes de mais, antropológica e ética. Questionar o lugar do desporto no currículo escolar implica perguntar: que ser humano se pretende formar e porquê? Esta é a questão central que distingue uma orientação curricular de um verdadeiro modelo pedagógico.

O presente artigo propõe uma análise crítica da Educação Desportiva no currículo atual, argumentando que esta se estrutura a partir de finalidades por justaposição, sem explicitação de valores nem de uma conceção antropológica fundadora. Tal ausência impede que seja considerada um paradigma ou modelo pedagógico, aproximando-a antes de uma ideologia naturalizada. Em alternativa, apresenta-se a Motricidade Humana como paradigma educativo explícito e coerente.


2. Ideologia, paradigma e modelo pedagógico: distinções necessárias

Uma ideologia caracteriza-se pela naturalização de práticas e valores, apresentados como evidentes e neutros, sem explicitação crítica dos seus fundamentos. Um paradigma, pelo contrário, explicita uma visão de mundo, uma conceção de ser humano e critérios de validade do conhecimento. Um modelo pedagógico é a operacionalização educativa de um paradigma, articulando valores, finalidades, metodologias e avaliação de forma coerente.

Sem valores explicitados e sem uma conceção antropológica assumida, não pode haver modelo pedagógico em sentido rigoroso — apenas orientações funcionais ou ideológicas.


3. O desporto no currículo escolar e a sua antropologia implícita

Os desportos que integram o programa de Educação Física (Aprendizagens Essenciais) são, indiscutivelmente, práticas culturais humanas, historicamente situadas e carregadas de valores. Expressam uma determinada relação com o corpo, com o tempo, com o outro e com o sucesso. Nesse sentido, possuem uma natureza antropológica.

Contudo, essa antropologia permanece implícita. O currículo não problematiza:

  • A lógica competitiva (oposição) como opção ética.
  • A interdependência negativa como forma dominante de relação.
  • Os mecanismos de inclusão e exclusão que o desporto transporta.
  • O tipo de sujeito que tende a privilegiar.

O desporto surge como conteúdo legitimado socialmente, não como objeto de reflexão antropológica. Os valores associados (respeito, cooperação, fair-play) aparecem como consequências naturais da prática, e não como opções pedagógicas previamente assumidas.


4. Finalidades por justaposição na Educação Desportiva

No currículo atual, as finalidades da Educação Física apresentam-se de forma justaposta: saúde, condição física, desempenho motor, socialização, cidadania. Estas finalidades coexistem, mas não derivam de uma finalidade educativa central, nem de uma conceção explícita de ser humano.

A cadeia lógica dominante parte dos conteúdos (modalidades desportivas), organiza competências e objetivos, e apenas depois associa valores e finalidades. Trata-se de uma lógica técnico-funcional, não axiológico-pedagógica. Esta estrutura inviabiliza a existência de um modelo pedagógico propriamente dito.


5. A Motricidade Humana como paradigma explícito

Em contraponto, a Motricidade Humana, tal como proposta por Manuel Sérgio, constitui um paradigma educativo explícito. Parte de valores fundamentais — dignidade humana, autonomia, cooperação — e assume uma conceção de ser humano como sujeito integral, relacional e inacabado.

A motricidade não é entendida como execução técnica, mas como ação intencional carregada de sentido, através da qual o sujeito se constrói a si próprio e em relação com os outros. A partir desta conceção, deriva-se pedagogicamente uma finalidade central: a formação integral do ser humano através da ação motora.

Só depois surgem as finalidades derivadas, os objetivos pedagógicos, os conteúdos e as metodologias, numa cadeia coerente e explicitada.


6. Antropologia implícita vs antropologia explícita

A diferença essencial entre a Educação Física Desportivizada e a Motricidade Humana não reside nas práticas em si, mas no seu estatuto pedagógico. No desporto, a antropologia existe, mas está naturalizada; na Motricidade Humana, a antropologia é assumida como fundamento e critério de decisão pedagógica.

É esta explicitação que permite transformar — ou mesmo rejeitar — práticas motoras quando estas entram em conflito com os valores assumidos. Onde há antropologia explícita, há escolha consciente; onde ela falta, há reprodução ideológica.


7. Conclusão

A Educação Física baseada predominantemente na Educação Desportiva, tal como configurada no currículo atual, não pode ser considerada um paradigma nem um modelo pedagógico em sentido forte. Ao não partir de valores explicitados nem de uma conceção antropológica clara, assume um carácter ideológico, naturalizando o desporto como conteúdo central e neutro.

A Motricidade Humana oferece uma alternativa epistemológica e pedagógica sólida, ao recentrar a Educação Física na formação do ser humano e não na reprodução acrítica de práticas desportivas. Mais do que uma mudança de metodologias, trata-se de uma mudança de fundamento.

  • Documento de apoio: PDF

Referências Bibliográficas:

Sérgio, M.

  • Sérgio, M. (1996). Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Faculdade de Motricidade Humana.
  • Sérgio, M. (2003). Para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Instituto Piaget.
  • Sérgio, M. (2013). Motricidade humana: qual o futuro? Lisboa: Instituto Piaget.

Bento, J. O.

  • Bento, J. O. (1999). Desporto e humanismo. Porto: Campo das Letras.
  • Bento, J. O. (2006). Educação física e desporto: discursos e práticas. Porto: Campo das Letras.

Kirk, D.

  • Kirk, D. (2010). Physical Education Futures. London: Routledge.
  • Kirk, D. (2013). Educational value and models-based practice in physical education. Educational Philosophy and Theory, 45(9), 973–986.

Tinning, R.

  • Tinning, R. (1991). Teacher education pedagogy: Dominant discourses and the process of problem setting. Journal of Teaching in Physical Education, 11(1), 1–20.
  • Tinning, R. (2010). Pedagogy and human movement: Theory, practice, research. London: Routledge.

Arnold, P. J.

  • Arnold, P. J. (1979). Meaning in movement, sport and physical education. London: Heinemann.
  • Arnold, P. J. (1988). Education, movement and the curriculum. London: Falmer Press.

UNESCO

  • UNESCO. (2015). Quality Physical Education (QPE): Guidelines for Policy-Makers. Paris: UNESCO.

Portugal – Documentos curriculares

  • Ministério da Educação. (2017). Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. Lisboa: ME.
  • Direção-Geral da Educação. (2018). Aprendizagens Essenciais – Educação Física. Lisboa: DGE.